Desventuras de um estudante brasileiro na terra de
Descartes
O Centro
Pompidou abriga museu, biblioteca e teatro. O autor do blog frequentou
assiduamente a biblioteca durante seu doutorado feito na Universidade de Paris.
Não sei como é seu funcionamento atual. No final da década de 1970, a
informalidade era o diferencial: não havia nenhum controle para a entrada no
recinto, você pegava os livros diretamente das estantes, e o chão, com carpete
limpo e macio, era a alternativa preferencial para uma leitura confortável.
Essas condições colocavam a biblioteca do Centro Pompidou no extremo oposto da
Biblioteca da França. Nesta, só doutores tinham acesso (ainda é assim?). Sendo
ainda doutorando, tive de mostrar uma carta de apresentação do meu orientador à
bibliotecária que negociou comigo quantas vezes eu poderia frequentar a Biblioteca.
Pedi, timidamente, quatro acessos e ela, generosamente, me deu dez. Com a
autorização em punho, registrei o número da mesa em que ia me sentar e só então
estava em condições de iniciar o processo para solicitar o empréstimo do livro
que não tinha na Biblioteca do Centro Pompidou, de dinâmica mais recente. O
tempo de espera é em torno de três horas e o livro não pode sair da mesa!
Antes de
solicitar o livro, tive que ir à área dos fichários. Um labirinto de gavetas,
letras e números. Ninguém para ajudar (ajudar doutores?). Fui percorrendo
aqueles corredores pasteurizados com cheiro de remédio contra mofo, sem a
preocupação de achar o livro que eu precisava, curtindo aquele ambiente seleto
e inexpugnável para a maioria dos habitantes do planeta terra. Nenhuma
vigilância (vigiar doutores?). De repente, uma pequena placa na entrada de um
salão indicava “Manuscritos anteriores a 1830”. Levou o tempo de um relâmpago
para eu me lembrar de Descartes e seu Discurso
sobre o método. Não olhei para os lados, hipnotizado pela possibilidade de
olhar a mesma folha de papel que o filósofo também tinha olhado. Ele olhou e
escreveu. Eu iria olhar sua mão escrevendo aquele texto que resiste ao tempo,
um texto mais atual do que as notícias do jornal da manhã. Sem tocar, percorria
as lombadas em busca da palavra mágica, Descartes.
– O que o
senhor está procurando??
Ela tinha uma
expressão preocupada e, ao mesmo tempo, assustada. Percebi que nem doutores
podiam entrar naquele templo. Rapidamente assumi a postura de doutor que tinha
esquecido a bússola no Brasil e mostrei a ficha com o nome do autor e título do
livro, faltando preencher o número de indexação. Ela ficou visivelmente
aliviada, achou graça de eu estar procurando um livro impresso no início do
século vinte na sala dos manuscritos antigos. Talvez por gentileza, talvez para
me tirar definitivamente dali, ela achou com facilidade o número que eu
procurava e me acompanhou até o saguão, sempre simpática.
Dei entrada no
pedido e, na impossibilidade de manusear os manuscritos de Descartes, fui ler o
Le Monde, porque o livro que eu queria
só viria dali a três horas...
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