sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014


Os castigos dos pecadores

Os monstros de Bosch são aparições que se apresentam a homens cuja razão fica interrompida durante o sono. Para seus contemporâneos, tratava-se exatamente de representações oníricas: em 1521, Marcantonio Michiel declara em seu jornal ter visto em Veneza obras de Bosch “representando sonhos”.

No primeiro plano à esquerda, o cavaleiro Tondal, protagonista da narrativa de Marcus de Cashel (séculos XII-XIII), vai alcançar sua salvação, sob a condução de um anjo da guarda, fazendo em sonho a experiência dos castigos reservados aos pecadores.

Ao centro, a cabeça com os olhos vazios e o “grande recipiente da cólera de Deus” evocam passagens da Bíblia. Ao fundo à direita, as grelhas incandescentes do Inferno (Museu do Luxemburgo, O Renascimeo e o sonho).

Escola de Bosch, A visão de Tondal (1520-30)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014


Sonhos enigmáticos e pesadelos

Muitas obras do Renascimento permanecem enigmas, amplamente abertas à interpretação, apesar dos esforços dos especialistas.

Em algumas obras, o Demônio intervém explicitamente: o Separador, o grande Transgressor, que faz nascer pesadelos.

Quando a soberania diurna cede, quando aparece a face noturna das coisas, toda fronteira entre a forma e o caos pode desaparecer. Então surgem os híbridos, os grotescos e os monstros; a imaginação dos artistas não tem limite. (Museu do Luxemburgo, O Renascimento e o sonho).

Karel Van Mander, Alegoria da Noite (fim do século XVI)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014


Casamento místico com Cristo

Segundo uma versão tardia de A lenda dourada, Catarina de Alexandria tinha sangue real e possuía uma grande erudição.

Quando se tornou rainha, ela se converteu ao cristianismo e recebeu o privilégio de uma visão na qual ela contraía um casamento místico com Cristo.

Na sutil composição de Carracci, a suave oposição de sombra e luz cria uma atmosfera propícia; o sonho/visão é aqui, literalmente, uma união com o divino (Museu do Luxemburgo, O Renascimento e o sonho).

Carracci, O sonho de santa Catarina de Alexandria (1600-1)

sábado, 22 de fevereiro de 2014


O simbolismo e a comunicação sagrada

Eu me mostrarei a ele por visão,
e falarei a ele em sonho.
                                                     Livro dos Números

 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014


Os amores de Júpiter

Entre temas grotescos, o artista figurou amores de Júpiter: o ‘rapto de Ganimedes’, segundo Michelangelo, ‘Leda e o cisne’ e ‘O sequestro de Europa’.

Também para o príncipe François, Allori adotou igualmente, com numerosos assistentes, motivos grotescos para ornamentar os tetos da primeira galeria do palácio dos Ofícios em 1580-1581 (Museu do Luxemburgo, O Renascimento e o sonho).



Alessandro Allori, Espaldar de cama com cenas mitológicas e grotescas (1572)

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014


Visões do além

O sonho abre o homem ao outro além de si.

Então, os ausentes, os mortos e os ainda não nascidos podem encontrar os vivos; o alhures pode se unir ao aqui; o passado e o porvir podem coincidir com o presente, e o imaginário se enlaçar com o real.

Como representar tal maravilha?

Entre os séculos XV e XVI, as maneiras de inscrever no espaço essa temporalidade paradoxal, com os “fantasmas” que a povoam, variaram muito conforme as regiões e as escolas: o mundo do sonho e o do real podem ser figurados lado a lado, religados por um mediador, ou separados tanto quanto unidos por uma fronteira (mandorla, nuvem, bolha...).

Mas em quase todos os casos, os artistas do Renascimento evitam pintar seus próprios sonhos; eles se inspiram na mitologia e nas histórias santas, sem fazer distinção entre sonho e visão.

Sonhadores e visionários podem acolher tanto o melhor quanto o pior, tanto o verdadeiro como o falso (Museu do Luxemburgo, O Renascimento e o sonho).

domingo, 16 de fevereiro de 2014


A cruz do Cristo

Mãe do imperador cristão Constantino, Helena recebe em seu sono a revelação do lugar onde foi enterrada a cruz do Cristo.

Essa admirável ‘imagem dentro da imagem’ provém da gravura de Marcantonio Raimondi, que por sua vez, foi tirada de um modelo de Raphael (Museu do Luxemburgo, O Renascimento e o sonho).

Veronese, A visão de santa Helena (c. 1570-5)


O blog esteve conversando com o doutor Joel Antônio Ferreira, professor do doutorado em Ciências da Religião da PUC Goiás. Suas explicações são muito elucidativas, como você pode comprovar no texto a seguir, escrito por ele.
Só mesmo a pintura renascentista para fazer a história ultrapassar os dez séculos de marasmo da Idade Média. Tudo se transformou!
No séc. XVI, Veronese se inspirou em Raimondi, que se inspirou em Rafael, que se inspirou no sonho de Santa Helena (séc. IV), que teve uma visão da Cruz de Jesus (séc. I).
O “evento Jesus” chegou aos píncaros do Renascimento, através da “arte dentro da arte”.
Sonhando, Rafael, Raimondi e Veronese nos mostraram como representar o irrepresentável.
O Blog do Avelino veio trazer os encantos da Renascença, expressos nos sonhos. Avelino, como todo lídimo artista, viu o Museu de Luxemburgo com um terceiro olhar.
Agora, ele nos faz penetrar nesse olhar e nadar em outra dimensão: num universo de leveza, revelado pela pintura, que não podemos perder.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014


A Eneida de Virgílio, no Renascimento

Deve-se a Nicolò Dell’abate a ilustração renascentista mais completa da Eneida de Virgílio.

Sua pintura mostra um episódio do canto VIII: adormecido à beira da água, Eneias vê aparecer o deus do país, Tiberinus, que lhe antecipa o destino de seus descendentes.

Acima, está pintado uma porca branca, sacrificada à Juno; mais acima, Eneias é conduzido à casa do rei Evandro.

Nas nuvens, Vênus observa o herói troiano enquanto ele descobre as armas forjadas em sua intenção por Vulcano.

A paisagem é concebida à maneira flamenga, como uma sucessão de cenas teatrais ritmando a narração (Museu do Luxemburgo, O Renascimento e o sonho).

Nicolò Dell’abate, O sonho de Eneias (c. 1540)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014


A Virgem Maria diante da Queda e da Salvação

Pintor do gótico tardio, Lambertini ilustra aqui a ligação doutrinal entre a Árvore do pecado original e a cruz da Redenção: esta, segundo uma tradição muito antiga, seria feita da mesma madeira da Árvore do pecado.

Maria adormecida vê em sonho a síntese entre a Queda e a Salvação (Museu do Luxemburgo, O Renascimento e o sonho).

Michele di Matteo Lambertini, O sonho da Virgem (c. 1440)
 
O blog entrevistou a doutora Ivoni Richter Reimer, professora do doutorado em Ciências da Religião da PUC Goiás. Ela fez uma análise esperta das relações de gênero presentes no quadro O sonho da Virgem. Leia abaixo.
São muitas as cenas pictóricas de visões ‘do lado de lá’ na história da arte. Em sonho, mulheres e homens acessam o mundo d’além, impregnado de imaginários e mentalidades da época.
Em 1440, Michele di M. Lambertini expressou isto, tematizando eixos centrais da teologia da época na tela em têmpera Le Rêve de La Vierge. Nela, as simbólicas da queda e da salvação (Adão, Eva, maçã, nudez, serpente personificada, árvore do conhecimento, o crucificado) são mediadas pela Virgem, interpretada na dogmática como o reverso de Eva.
Pais da Igreja apregoavam que se uma mulher (Eva) abriu as portas para o pecado no mundo, a outra (Maria) as abriu para a salvação do mundo, por meio do nascimento de seu filho Jesus.
A simbólica e a interpretação do bem e do mal formam uma unidade complexa e polissêmica: a árvore é simultaneamente a cruz, e a sua sobreposição aponta para a superação do mal; os humanos são sujeitos de discernimento e ação.
A ideologia aristotélica de equiparar ‘natureza e feminino’ retorna forte no renascimento, aqui especificamente na personificação feminina da serpente, que tece um ‘fio’ direto entre os olhos e olhares da mulher e da serpente.
Hermenêuticas feministas criticam a culpabilização de Eva e de todas as mulheres que não se alinham com as representações femininas tecidas dogmaticamente a partir de Maria e propõem outros significados para a interação entre Eva e a serpente, como busca do conhecimento, astúcia e transgressão de normas patriarcais, objetivando a construção de relações de igualdade, respeito às diferenças e reciprocidade.
 
 

sábado, 8 de fevereiro de 2014


Amor e ambição

Diante de O sonho de Páris, de Pieter Coecke van Aelst, a guerra de Troia não me saía da cabeça. O belo quadro reúne ideias tão diferentes como o amor, a ambição do homem pelo poder e a guerra.

Tendo seu destino definido por Vênus, foi suficiente Páris passar diante de Helena para que ela o seguisse.

Helena era esposa de Menelau, rei de Esparta, que considerou tal ato de Páris, que era troiano, como uma hostilidade contra todos os helenos.
Os gregos, sob o comando de Agamenon, rei de Micenas, organizaram uma expedição punitiva para resgatar Helena.

Essa motivação declarada para a guerra de Troia não conseguiu esconder o verdadeiro interesse da aristocracia grega: o controle de uma importante porta comercial para a Ásia, ambicionada havia muito tempo.

O que se seguiu todos conhecemos: durante anos a cidadela de Páris foi cercada sem que os gregos conseguissem penetrá-la, até que, com a artimanha do cavalo de Troia, os helenos invadiram a cidade, vencendo a mais épica de todas as guerras.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014


O amor da mulher mais bela

Na frente de Vênus, Juno e Palas Atena, a Discórdia lançou um pomo “para a mais bela”.

– Júpiter vai resolver qual de nós é a mais bela, disse Juno confiante por ser a esposa.

– Eu não sou a pessoa indicada para fazer a escolha, disse o senhor do Olimpo.

Político astuto, ele sabia que, qualquer que fosse a escolhida, as duas outras ficariam furiosas. Júpiter transferiu a Páris a difícil decisão.

Diante de Páris, filho do rei de Troia, mas ocupando-se dos rebanhos, cada uma fez sua proposta.

Pieter Coecke van Aelst, O sonho de Páris
 

– Eu te darei a vitória, argumentou Palas Atena, deusa da guerra justa.

Na pintura de Van Aelst, Palas Atena é a figura que está mais à direita, cuja identidade se mostra pela espada e pelo capacete. Com sua mão direita, ela oferece a coragem ao príncipe.

– Eu te concederei o reino, apressou-se a declarar Juno, a rainha do Olimpo.

Ela se coloca entre as duas outras deusas e é portadora da coroa real. Envolvendo seus braços em seu próprio corpo, ela sugere que o reinado será dele.

– Eu te garanto o amor da mais bela entre as mortais, falou docemente Vênus, a deusa do amor.

Vênus olha para as outras duas e, com sua mão direita, parece dizer:

– Como alguém pode resistir à minha oferta?

A oferenda é indicada pela sua mão esquerda.

O pragmatismo que move as sociedades modernas levaria Páris a escolher o poder ou a vitória. Mas o príncipe/pastor vivia o romantismo ingênuo das sociedades do passado e escolheu Vênus a vencedora. Assim fazendo, ganhou o amor de Helena, a mais bela dentre todas as mulheres.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014


Amor e Psiquê

O conto filosófico de Psiquê – personificação da alma que, dilacerada entre os mundos material e espiritual, se une ao amor divino depois de muitas provações – inclui também uma história de inspiração e de encantamento: enquanto a bela princesa espera a vinda de seu marido sobre um rochedo escarpado, o vento Zéfiro toma-a em seus braços e a conduz à casa do deus do amor, cujo rosto e nome é proibido conhecer.
Eros só a visita na obscuridade da noite
(Museu do Luxemburgo, O Renascimento e o sonho).
Curiosa, sem que ele saiba, ela vai silenciosamente aos aposentos dele para descobrir quem é o seu marido...

Jacopo Zucchi, Amor e Psiquê

domingo, 2 de fevereiro de 2014


Inspiração, encantamento, alegoria

Abandonados ao peso do sono, homens e mulheres veem abrir-se uma outra cena: a potência demoníaca do sonho os faz entrar em um mundo novo, em locais não-localizáveis, onde eles se duplicam, onde a ordem natural das coisas está rompida, onde abundam as metamorfoses e as maravilhas.

Estado propício à inspiração criadora, o espaço do sono e do sonho aparece junto com o do “furor poético”.

É também sobre a obscuridade – não mais física, mas intelectual e igualmente fecunda – que numerosos artistas do Renascimento produzem, recorrendo-se à alegoria.

Expressão figurada de uma ideia, a alegoria tem o mesmo fundamento do sonho: como ele, ela dá significado a uma coisa por uma outra; como ele, ela exprime-se de maneira deslocada e frequentemente misteriosa.

Por mais diferentes que elas se mostrem, as obras em que aparecem pessoas adormecidas testemunham a estreita relação que une o alegórico ao onírico; e elas excitam tanto a imaginação, porque elas conservam uma parte do enigma
(Museu do Luxemburgo, O Renascimento e o sonho).